A vida é realmente surpreendente, em nenhum momento planejei escrever três livros para contar a história da minha mãe, depois de acometida pela Doença de Alzheimer. Quando comentei pela primeira vez com Dr. Adriano Gordilho, depois de Mamy passar por uma consulta e nos surpreender com algumas reações inusitadas, recebi o primeiro incentivo.
– Escreva mesmo, Rosa, vai ser muito bom as pessoas conhecerem a Doença de Alzheimer pelo olhar da filha cuidadora.
Era apenas um pensamento, que se concretizou com um objetivo muito claro, as pessoas precisam saber que o cuidador familiar não é um coitadinho, merecedor de pena. O Alemão Veio nos Visitar manda um recado a todos que se envolveram com a nossa história: não sou uma coitadinha. Ao conviver com famílias que têm a Doença de Alzheimer no seu seio, me irrita quando um filho ou filha, cuidadores, querem justificar suas frustações pela presença da doença:
– Sou solteira, claro, quem vai se chegar sabendo que vai ter que conviver com minha mãe assim;
– Acabou sobrando para mim, e tenho que fazer isso sozinho, pois minha mãe nunca foi uma sogra fácil, por isso a nora nem chega perto.
Realmente, essa não é a nossa história. Precisava contar para todo o mundo que o Alzheimer não roubou minha vida e nunca me senti carregando uma cruz. Acho que funcionou, porque mesmo passados quase quatro anos do lançamento do primeiro livro ainda recebo mensagens de agradecimento por saber que podem ter esperança. Mas admito: o primeiro livro escrevi por mim.
Poderia ter finalizado a história aí, final feliz, mas havia mais coisas para contar e, o mais importante, precisava contar para as pessoas que minha mãe também não era uma coitadinha, digna de pena. Como a história se tornou pública, as pessoas queriam saber notícias, e aqueles que estavam mais próximos diziam coisas assim:
– Gosto muito de sua mãe, mas coitada…
Ou assim:
– Sinto tanta pena de sua mãe, essa doença é uma praga, que cruz você tem que carregar.
Vamos combinar que não são coisas agradáveis de se ouvir e tenho certeza de que se minha mãe imaginasse que estavam falando isso dela ficaria uma arara, como eu ficava. Então escrevi O Alemão Pegou o Bonde, para explicar que apesar de todas as dificuldades, de conviver com uma doença degenerativa e irreversível, é possível aproveitar a vida, ser feliz. O segundo livro escrevi por ela, para avisar que D. Detinha não era coitadinha. Também poderia ter finalizado aí, seria uma história sem fim, pois Mamy estava viva, apesar da evolução do quadro demencial.
Mas não vivemos no país de Alice, aquele das maravilhas, na realidade as pessoas nascem, vivem e morrem, e não poderia deixar de falar sobre esta última etapa, pois quem assume o papel de cuidar do familiar acometido pelo Alzheimer, mesmo exaurido, não pede a Deus descanso, porque sabe que isso representa não ter mais o fruto do seu esgotamento ali ao seu lado. Estas pessoas vivem como se estivessem em um filme de Alfred Hitchcock, estado de tensão e sustos constantes, mas elas também passam por outra situação, pois aqueles que assistem a sua dedicação, seus medos e cansaço, começam a fazer comentários do tipo:
– Fico muito preocupada, quando a mãe partir, a pobre da filha vai desmoronar.
Mais uma vez carimbam o rótulo de coitado, castigado e sofredor inveterado a quem cuida. E isso também vivi na pele. Ao saber que minha mãe havia falecido, uma conhecida, daquelas que você encontra duas vezes ao ano, mas que tem notícias suas por ser parenta de uma amiga, me liga. Inicialmente diz aquelas coisas de praxe, que sente muito, que Mamy havia descansado e, depois, faz a tradicional e inadequada pergunta:
– Como você está? Está bem?
Respondo como realmente me sinto, bem, mas isso não quer dizer que esteja alegre e saltitante, mas estou bem. Assim que respondo, ela rebate:
– É, tem que dizer que está bem mesmo, mas sei que você não está bem, mas tem que ser forte e se recuperar…
Se sabe, por que pergunta? Sabe mesmo? A conversa se torna um monólogo. Quando a criatura falante e sabida toma fôlego, apenas expresso meu tédio com um insosso Ahan.
Por essas e outras é que precisava escrever o final dessa história, o terceiro livro, mas agora não é por mim nem por Mamy, é por todos aqueles que se dedicam a cuidar, a ofertar e receber amor, mesmo sabendo que o desfecho implicará na ausência da pessoa querida. É para dar força para quando receberem uma ligação semelhante a essa que relatei lembrem que devem deixar a criatura falante, do outro lado da linha, ouvir a interjeição sem graça e que pode ter variações como: Humm, Uhumm e Ahan, minha predileta. Mas, na verdade, certo seria dizer: Sabe de nada, inocente.
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